30 janeiro, 2008

Schhhhh.... (私道)

(Este post ficou guardado como rascunho, pensava que tinha sido publicado e afinal estava aqui escondido)

Ele saiu pé-ante-pé, descalço, em bicos de pés, para não acordar a madeira do chão, chegou-se à beira dela e murmurou-lhe qualquer coisa que a comparou a uma outra coisa aparentemente sem valor, mas cheia daquele valor que só ele dá às coisas sem valor. Deu-lhe um beijo no pescoço cheio daquele cheiro só dela e voltou aos cadernos de grelha e aos números da matemática.



A Música
Estava eu a ver as notícias do dia (por sinal todas muito interessantes e especialmente ridículas) e deparei-me com uma notícia do novo álbum da Cat Power, onde um robô disfarçado de gente me disse: “Gosta de Cat Power? Então também vai gostar de Dawn Landes”. Estive quase para o mandar para o mesmo sítio que mando os gnomos irritantes da TMN que, para além de ligarem de números anónimos, estão sempre a insistir que eu responda ao inquérito de (in)satisfação, mas decidi ir investigar essa tal de Dawn Landes que o robô me aconselhou...


The phone's ringing
It's been ringing all morning
And the knocking, it’s not starting, it's stopping
And the screaming, in the streets it's like barking
It's nothing, they are kissing

They don’t hear anything
They don’t notice the lightning
It's striking at the silent fighting
The everything for control of the ceiling
It's winning, and the rain pours down on her

Soak in the carpet, their shoes and the furniture
And he needs her to drown out all the water and noise in his head

Someone's choking, someone's praying so hard
They are listening to the stained glass for answers
They don’t come in from the walls
Which are taking a beating from the wind on the outside
And it's beating, all its way to the break
And it's meeting, that will make them love sick
The walls crumbling, they don’t feel anything,
They feel nothing but the kissing
 

 
     

28 janeiro, 2008

Conversa Com A Lua / Conversa Com O Mar

Não terá sido por acaso que os deuses*, quando criaram a Lua e a Terra há precisamente 4,540,002,008 anos, 25 dias, 23 horas e 43 segundos atrás, as terão colocado numa posição tal que, passado esse tempo todo, tendo em conta os movimentos de translação e rotação das duas, a inclinação, e até mesmo a excentricidade orbital, a Lua e o Mar aparecessem em posições contrárias, a este e oeste, respectivamente, exactamente na posição 41.476786º de latitude e -8.773184º de longitude do planeta Terra, um lugar inventado, povoado por faróis imaginados, rios da profundidade de dois grãos de areia, ondas em escada a lembrar as vinhas do Douro, dunas que não gostam de carros nem de pessoas e aldeias que fariam sentido uns graus mais abaixo, na latitude do Alentejo.

Será por estas alturas premeditadas por esses tais deuses que, de tempos a tempos, um raio de luz da Lua e uma gota da água do Mar se abraçam e, por entre beijos e carícias, aproveitam para falar sobre a vida em geral e o programa da tia Júlia em particular, antes que venha a manhã e todos aqueles movimentos que o Universo lhes impõe os volte a separar...






* Substituir o termo “Deuses” por aquilo em que acreditam que criou o Universo, desde uma grande coincidência estatística de acontecimentos aleatórios, até Deus (nas suas variadas vertentes e nomes), ou até, se preferirem, os Gnomos mágicos que controlam tudo!



A Música
Esta música já está mais batida que o sino principal da Sé de Braga, é certo, mas também é certo que as grandes músicas nunca cansam, por mais que lhes batam. Por isso, sempre a acrescentar novos significados e contextos à música, aqui fica esta fabulosa e lindíssima Cannonball do irlandês Damien Rice.


There's still a little bit of your taste
In my mouth
There's still a litle bit of you laced
With my doubt
It's still a little hard to say
What's going on

There's still a little bit of your ghost
Your weakness
There's still a little bit of your face
I haven't kissed
You step a little closer each day
And I can't say what's going on

Stones taught me to fly
Love, it taught me to lie
Life, it taught me to die
So it's not hard to fall
When you float like a cannonball

There's still a little bit of your song
In my ear
There's still a little bit of your words
I long to hear
You step a little closer to me
So close that I cant see what's going on...

And stones, taught me to fly
Love, it taught me to lie
Life taught me to die
So its not hard to fall
When you float like a cannon...
Stones taught me to fly
Love, it taught me to cry
So come on courage
Teach me to be shy
Cause it's not hard to fall
And i dont want to scare her
It's not hard to fall
And I dont want to lose
It's not hard to grow
When you know that you just...
Dont know
 

 
     

24 janeiro, 2008

Preso Na Cena Da Cave Subterrânea Do Vilão De Um Filme Do James Bond

Quando dei por mim estava a descer as escadas secretas para entrar na cave subterrânea do vilão de um filme do James Bond, depois de ter passado a porta com o sinal: "Acesso Proibido a Pessoas Estranhas". Não sei se me consideram a mim uma pessoa estranha ou não, mas lá entrei.

Já no piso -2, depois de percorrer metros de corredores estreitos preenchidos por tubos pendurados no tecto, encontrei uma senhora a mexer nuns botões numa caixa que parecia controlar o lançamento dos mísseis nucleares do vilão que quer controlar o mundo a todo o custo, para... hum... porque é que eles querem controlar o mundo? Deve ser uma chatice essa coisa de controlar o mundo todo, depois ficam sem tem para nada.

Aproximei-me da senhora com aspecto ameaçador ao longe, que logo se transformou numa velhinha dócil e simpática ao perto e que me disse na sua voz mais simpática de desenho animado, perante o meu ar perplexo: "Estou a desligar a água da piscina dos pequenotes".

Tirei o casaco (nunca pensei que estes sítios fossem tão quentes e acolhedores, pensei que seriam mais frios e sombrios) e segui a senhora até à sua secretária deserta, com uns armários brancos fechados atrás dela, por mais cliché que pareça. Sentou-se na cadeira preta com rodinhas e chegou-se a uma gaveta, depois de colocar os óculos mesmo na ponta do nariz e de ter tirado a chave minúscula da gaveta de um molho de chaves que, se fosse meu, faria com que ficasse à porta de casa todos os dias, pois nunca conseguiria encontrar uma chave no meio de tantas outras exactamente iguais.

Esboçou um sorriso ainda mais simpático e tirou da gaveta uma pequena lata redonda, azul, e com desenhos de bolachinhas inglesas na tampa. Pensei para mim: "É desta, vai tirar uma pistola dali e vai-me obrigar a cantar o fado!". Mas não, tirou apenas uma bolachina em forma de flor, com uma rodinha vermelha no centro e apontou-a para mim.

Aceitei-a com todo o agrado e meti-a à boca, logo fingindo que era a primeira vez que comia uma bolacha daquelas, como se aquela fosse a melhor bolacha do mundo e não mostrando que tinha medo que a parte vermelha estivesse envenenada com Polónio 210, aquele veneno radioactivo que os russos usam para matar os seus próprios espiões.

Ela voltou a meter a mão na gaveta. Imaginei que fosse desta que ela fosse tirar de lá uma pistola, um velho truque dos vilões, primeiro faz-me sentir à vontade e depois apunhala-me nas costas. Tirou umas facas finas e pontiagudas, com as quais começou a fazer crochet.

"Vou fazendo isto às escondidas, sabe? É que se o engenheiro me apanha, começa logo a relatar", e quando disse "engenheiro" com uma entoação de perigo, olhou pelo canto superior direito dos seus olhos, apontando para o corredor de tubos que se erguia atrás de si.

Alguém tocou-me no ombro, e foi aí que me apercebi que estava a ver as coisas pelo prisma errado, ela era a velhotinha simpática, mas que parvo, não ia ser ela a sujar as mãos, deviam ser os guarda-costas corpulentos dela que agora me iam torturar até eu lhes dizer onde é que escondi os códigos de lançamento.

"João... João!", gritou alguém, "Deixa-te de coisas, vamos lá acabar o vídeo!".

"Obrigado pela bolacha, tenho que voltar ao trabalho!", disse à senhora simpática que controla os botões que controlam a água da piscina das crianças e que só queria fazer o seu crochet sem que o “engenheiro” a chateasse.





A Música
Os Air (aparentemente um acrónimo para Amour, Imagination, Rêve) revolucionaram o downtempo ou trip hop ou electónica, ou como lhe queiram chamar, há 10 anos atrás, em 1998 com o fabuloso Moon Safari, considerado por muitos críticos como o melhor álbum da década de 90. Em 2001 regressaram com 10,000 Hz Legend de onde tirei este How Does It Make You Feel, a história de uma máquina apaixonada por outra máquina e que não compreende bem os sentimentos dessa outra máquina.

(O vídeo é também uma obra de arte absolutamente genial: YouTube)


I am feeling very warm right now
Please don't disappear
I am spacing out with you
You are the most beautiful entity that I've ever dreamed of

At night I will protect you in your dreams
I will be your angel
You worry so much about not having enough time together
It makes no difference to me
I would be happy with just one minute in your arms
Let's have an extended play together
You're telling me that we live to far to love each other
But your love can stretch further than you and I can see
So how does it make you feel?

How does it make you feel?
How does it make you feel?
How does it make you feel?
How does it make you feel?

Do you know when you look at me
It is a salvation
I've been waiting for you so long
I can drive on that road forever
I wish you could exist to live on my planet
Well it's very hard for me to say these things in your presence
So how does it make you feel?

How does it make you feel?
How does it make you feel?
How does it make you feel?
How does it make you feel?

So how does it make you feel?
Well,I really think you should quit smoking
 

 
     

22 janeiro, 2008

52 Palavras

Enquanto ele a tinha nos braços, não queria sair dali. Deu-lhe um beijo no gorro gelado e fingiu ser aquele o vermelho dos seus lábios. Ela quis fugir da tempestade que quase os matava e ele queria ficar ali para sempre, mesmo que isso implicasse que eles se tornassem esculturas de gelo.



A Música
É a música número 100 deste blog! (momento de publicidade irritante da net ao melhor estilo do: "Congratulations, you are the 100th visitor! Click here to reclaim your prize"). Ok, agora a música em si: É do senhor Ryan Adams, o controverso músico americano famoso pela sua atitude: "fuck you all, I don't need you!" e famoso também pela quantidade anormal de álbuns que lança ao quilo. Esta When The Stars Go Blye é da fornada Gold de 2001. (O vídeo também está muito bom: YouTube)


Dancin' where the stars go blue
Dancin' where the evening fell
Dancin' in your wooden shoes
In a wedding gown

Dancin' out on 7th street
Dancin' through the underground
Dancin' little marionette
Are you happy now?

Where do you go when you're lonely
Where do you go when you're blue
Where do you go when you're lonely
I'll follow you
When the stars go blue

Laughing with your pretty mouth
Laughing with your broken eyes
Laughing with your lover's tongue
In a lullaby

Where do you go when you're lonely
Where do you go when you're blue
Where do you go when you're lonely
I'll follow you
When the stars go blue
The stars go blue, stars go blue


(não queria sair do gelo, depois não queria sair da praia e agora quero é sair daqui para ir ter contigo onde quer que estejas, onde quer que isso seja... mas isto sou só eu a ser parvo...)
 

 
     

16 janeiro, 2008

Os Dias

Os dias passam sempre ao mesmo ritmo, são sempre 24 horas, ou 1440 minutos ou ainda, se preferirem, 86400 segundos. Mas, por uma razão estranha (ou facilmente explicável), há dias que nos parecem passar mais rápido que outros.

O dia de hoje não passou depressa nem devagar, não foi nem bom nem mau, não vou ter espaço para ele na caixinha apertada que é a minha memória. Mas, por uma razão estranha (ou facilmente explicável), apeteceu-me deixar a marca de um dia ameno, antes que venham dias melhores que lhe roubem o protagonismo.



A Música
Para além da bossa nova, o Brasil dos anos 60/70 também ficou marcado pelo movimento Tropicália onde valia misturar tudo, do rock psicadélico à bossa nova. Na agitada São Paulo da época, onde tudo parecia estar a acontecer, nasceram Os Mutantes com a sempre excêntrica Rita Lee à cabeça. Por entre músicas cómicas e estranhas, destaco esta mais séria, ainda actual, cada vez mais actual...


You know, you must take a look at the new land
The swimming pool land. The teeth of your friend
The dirty in my hand
You know, you must take a look at me

Baby, baby
I know that's the way

You know, you must try the new Ice Cream Flavor
Do me a favor. Look at me closer. Join and so go far
And hear the new song of my Bossa Nova

Baby, baby
It's been a long time

You know, it's time now to learn portuguese
It's time to learn what I know
And what I don't know

I know, with me everything's fine
It's time now to wake up your mind
We live in the biggest city
Of South America
Of South America
Of South America
Look here. Read what I wrote on my shirt

Baby, baby
I love you

[You do]
 

 
     

12 janeiro, 2008

Coisas Aleatórias

"Nem tudo é assim tão aleatório como as pessoas pensam", dizia alguém na televisão ofuscada pelo reflexo do sol que decidiu aparecer por momentos em mais um dia de chuva e frio.

Peguei no comando (tendo para isso que me levantar e ir buscá-lo mesmo ao lado da televisão, o habitat natural dos comandos, contrariando aquilo para que eles foram inventados por um senhor cansado de se levantar para ir mudar de canal) e, quando ia mudar de canal, o comando não funcionou. Estava sem pilha.

"Uma vez estava na fila do supermercado", continuava a mulher com ar de intelectual, no ambiente estilizado e futurista do programa de televisão cujo nome desconhecia, "era um daqueles mini-mercados pequenos de cidade, e rompeu-se-me o saco com as laranjas porque sou preguiçosa e meti laranjas a mais na saca, que por sua vez era mais fina que as sacas normais, possivelmente uma opção dos proprietários do supermercado para poupar dinheiro em sacas".

Levantei-me novamente para ir à gaveta das pilhas novas para fazer o meu zapping matinal. Só encontrei pilhas usadas metidas cuidadosamente no lugar das novas por alguém que nunca consegue encontrar os pilhões em lado nenhum. Mas porque é que raio é que não metem os pilhões junto do ecoponto? Quem é que se lembra de ir ao supermercado ou à farmácia com uma saca cheia de pilhas?

"O rapaz que estava atrás de mim na fila teve a gentileza de me ajudar a apanhar as laranjas, que estavam espalhadas pela loja toda, e ainda me aconselhou a meter as laranjas em duas sacas para distribuir o peso."

O gato olhava-me de esgueira (ainda molhado e cheio de terra por ter andado onde não devia), enquanto eu tirava as pilhas do relógio da cozinha para tentar mudar finalmente de canal. Estava com azar, não são do mesmo tamanho (mas quem é que teve a infeliz ideia de fazer pilhas de milhares de tamanhos diferentes? Será que não podiam chegar a um consenso sobre um tamanho igual para todos os aparelhos? É que depois ainda têm a lata de meter nomes tão distintos e facilmente confundíveis como AA ou AAA ou AAAA).

"E foi assim que conheci o meu marido, que mais tarde me viria a dizer que na verdade já tinha ido ao supermercado meia hora mais cedo, mas não tinha dinheiro que chegasse e teve que ir a casa buscar o resto do dinheiro. E mais, a razão porque ele não tinha dinheiro foi porque passou por um quiosque a caminho do supermercado e decidiu comprar uma revista que nunca tinha comprado porque achou o artigo da capa interessante".

Com a agulha de crochet da minha avó (entretanto adormecida na sua cadeira de almofadas vermelhas), tentava carregar nos botões minúsculos da televisão feita por uns anões japoneses que não têm os dedos tão grandes quanto os meus me pareciam em comparação com aqueles botões.

"E você, porque foi ao supermercado?", perguntou a apresentadora que até aí só tinha aparecido em planos de beleza para mostrar o seu interesse na conversa, "Acabou-me o leite porque o gato tinha entornado o último pacote."

Antes de fazer força na agulha e finalmente mudar de canal, parei para pensar. Se calhar a mulher tem razão, as coisas não são assim tão aleatórias como pensamos. Porque carga de água (daquelas que nos atacam quando finalmente já não estava tanto frio) é que aqueles dois seres humanos se foram encontrar de forma tão aleatória naquele preciso momento da ampulheta temporal do universo, condicionados por outros tantos acontecimentos aleatórios? E porque razão é que a dona Micas, que ia todos os dias ao supermercado àquela hora, não estava lá naquele dia na fila, entre o rapaz e a rapariga?




As Músicas
O som do mar podia estar mais baixo, a areia podia estar mais limpa, a constelação pata de galinha podia estar visível, as estrelas podiam não estar a apontar para norte, podia estar menos frio, o chá podia estar mais quente, podia não ter chovido, podias deixar pegadas de formato mais convencional que não coubessem dentro das minhas, podia não haver lugar no café frio, podiam não ter sobrado grãos de açúcar para desenhares em cima da mesa estranha, os vidros podiam não ter embaciado ao ponto de se poderem fazer desenhos, podíamos não ter molhado os casacos que nos deixaram frios e desconfortáveis, podias não ter ficado com o meu porta-chaves de madeira (e como senti falta do tilintar daquele pedaço de madeira a bater no plástico do carro no regresso a casa), podia não ter acontecido nenhum desses pequenos acontecimentos aleatórios (in)dignos de registo e mesmo assim não me iria querer esquecer da noite em que tudo quase correu bem mas que foi sabotada pelos gnomos rebeldes que controlam o tempo.


There's a wind that blows in from the north,
And it says that loving takes its course.

Come here. Come here.

No I'm not impossible to touch,
I have never wanted you so much.

Come here. Come here.

Have I never laid down by your side?
Baby, let's forget about this pride.

Come here. Come here.

Well, I'm in no hurry.
You don't have to run away this time.
I know that you're timid,
but it's gonna be all right this time.


Duas singer-songwriters assustadoramente simples: em cima a americana Kath Bloom, em baixo a nossa Mafalda Veiga.


A noite vem às vezes tão perdida
E quase nada parece bater certo
Ha qualquer coisa em nós inquieta e ferida
E tudo o que era fundo fica perto
Nem sempre o chão da alma é seguro
Nem sempre o tempo cura qualquer dor
E o sabor a fim do mar que vem do escuro
É tanta vezes o que resta, do calor

Se eu fosse a tua pele
Se tu fosses o meu caminho
Se nenhum de nós se sentisse nunca sozinho

Trocamos as palavras mais escondidas
Que só a noite arranca sem doer
Seremos cúmplices o resto da vida
Ou talvez só ate amanhecer
Fica tão fácil entregar a alma
A quem nos traga um sopro do deserto
Olhar onde a distância nunca acalma
Esperando o que vier de peito aberto

Se eu fosse a tua pele
Se tu fosses o meu caminho
Se nenhum de nós se sentisse nunca sozinho
 

 
     

06 janeiro, 2008

Outros Tempos...

A noite havia já caído sobre o Condado Portucalense, nome recentemente emprestado da cidade de Portus Cale, sendo esta agora e para o futuro conhecida apenas como Porto, na novíssima rua de terra batida recentemente mandada construir por D. Afonso, que mais tarde viria a formar o seu próprio reino.

Na carruagem parada, inútil perante o lago que havia inundado a tal nova rua, à conta da chuva que não parava de cair, estavam dois jovens com o melhor dos aspectos, a contrastar com as gentes deste baldio que até há bem pouco tempo nem sequer era servida por estradas e, por real consequência, era invisível a olho da nobreza.

- Não tenhais falsas esperanças, que tão cedo esta chuva não passará. - Afirmou o jovem cavalheiro com tamanha certeza que não dava maneio para dúvida.

E não passaram mais de cinco minutos, isso vos juro eu, este humilde narrador, até que parasse completamente de chover.

- Vejo que as coisas do tempo não são a que mais dominais. - Troçou a jovem Donzela que acompanha o cavalheiro.
- Pois ficai sabendo que as coisas do tempo e as coisas do coração não me guardam a mim qualquer segredo.
- Pois vejo que não, vejo que não. Que dizeis então a uma caminhada pela calma da noite, enquanto essa vossa amiga, a chuva, não volta?

E vos garanto eu mais uma vez que não passou mais de um quarto de uma hora até que a chuva voltasse a cair e desta vez, ou muito ignorante seja eu nessas coisas do tempo que faz, não se apressará a parar tão cedo.

Encurralados pela surpresa que só parece ter surpreendido a jovem Donzela, e já muito afastados da carruagem que, verdade seja dita, também não os iria acudir de tão violenta tempestade, o jovem cavalheiro apressou-se a remediar a situação da melhor maneira que podia e sabia.

Toc. Toc. Toc.

Foi o som que saiu aquando do contacto de sua mão coberta com a mais branca das luvas, com a parte húmida e dura da madeira da porta.

- Quem aí vai? Quem aí vai? - Questionou uma voz de mulher por entre a escotilha da porta.

- Pois cara senhora, peço-vos pela mercê de nosso senhor que nos acudais neste momento de aflição, que deixamos terra firme e vêmo-nos agora presos nesta ilha prestes a afundar-se.

A masmorra fechou-se e fez silêncio durante os próximos vinte e três segundos, se é permitida a este narrador a ousadia de abusar desse instrumento tão raro e valioso que é a precisão, enquanto a mulher ponderava se haveria ou não de abrigar fugitivos de aspecto tão ilustre como estes que se apresentavam à sua frente.

- Fazei o favor. - Mandou-os entrar, confirmando as minhas suspeições de que iria mesmo, ou não fosse eu omnipresente e omnipotente, não em todo o mundo, está certo, mas pela graça que Deus nosso senhor me concedeu, pois que serei um deus menor em minha história.

Os dois entraram. Primeiro o cavalheiro, como mandam as regras daquilo que ficará para a vossa história como cavalheirismo, sempre que homem e mulher se apresentem perante situações de perigo, coisa que não acontecerá aqui, mas por enquanto nenhum dos dois sabe isso. Oh, mas que triste e infeliz narrador sou eu, porque vos digo a vós, caros leitores, que não haverá perigo? Se o não dissesse, pois que vós iríeis estar a pensar se haveria ou não. As minhas mais ilustres desculpas, mas agora não vou dar a volta à pena e vou continuar a história, pois que o papiro e a tinta estão pelo preço da morte nos tempos que correm.

A Donzela entrou logo que o cavalheiro lhe concedeu entrada, com cada uma de suas sete saias arregaçadas, sendo que a última se arregaçou em demasia, colocando-se-lhe parte do tornozelo à mostra, situação que nenhum dos dois conseguiu ignorar, ficando suas faces da cor dos tomates, e ficai descansados que nos tempos em que nos encontrámos os legumes a que damos o nome de tomalt não têm ainda a conotação malvada e depravada que bem reflectem os tempos que estão para vir.

- Estava já eu com o pote ao lume, quereis vós um caldinho quentinho que vos aqueça a alma?

- Pois a ferver já está minha alma, mas meu corpo treme, por isso em meu nome e em nome da Donzela que se apresenta ao meu lado, pois que lhe ficaríamos eternamente agradecidos e apenas lhe poderemos prometer isso, pois que apesar de nosso aspecto burguês, a única coisa que possuímos é o coche que se encontra lá mais abaixo, ainda em terras de vosso senhor.

- É tudo quanto me basta a mim, porém não é a mim que tereis de agradecer, mas antes ao senhor meu pai.

Os dois trocaram olhares chocados: Como pode uma mulher de tamanha idade e bigode já feito ainda prestar contas a seu pai? Foi então que a mulher começou a falar, como se nunca o tivesse feito e como se, chegada ao fim, não lhe restassem mais palavras para descrever mais nenhum pormenor de sua vida, pois todas as palavras estariam gastas como sua garganta.

Foi assim que os dois ficaram a saber que seu marido havia saído para o mar uma noite e não havia voltado no dia a seguir. A mulher esperou enquanto pôde, até lhe começarem a cair os primeiros dentes, e mais uma vez vos aviso, caros leitores do futuro, pois que todos os leitores são do futuro porque nunca ninguém lê um livro ao mesmo tempo que ele é escrito, mais uma vez vos aviso que nos tempos que correm a higiene dentária não é das principais preocupações das gentes da nossa altura, sendo que os dentes nos começam a cair por volta dos vinte e cinco anos da nossa triste vida.

Com um dente a menos e ainda sem crias, a mulher regressou a casa de seus progenitores procurando abrigo, procurando a comida que já lhe faltava há tanto tempo. Sua mãe havia já passado para aquele lugar melhor a que nós, no nosso tempo, chamamos de purgatório, não sabendo eu que nome usais vós, no vosso tempo, para descrever o lugar para onde se vai depois de morrermos, se é que usais algum nome para o descrever.

Seu pai, agricultor desde tenra idade, acolheu-a de bom grado e agradeceu a ajuda escrava que uma mulher sempre dá (perdoai se a expressão é abusada para vosso tempo, espero eu, um utopista assumido, que por vosso tempo essas criaturas tão belas já tenham melhores dias).

Chocados das suas vidas, a ouvir tamanha história, os dois jovens devoravam o caldo de água a saber a uma couve que a mulher logo retirou do pote para aproveitar para outro caldo. Nunca imaginaram, nas suas vidas mimadas de realeza por entre banquetes de comida que sobrava sempre, que existiriam pessoas a viver em tamanha miséria, alimentando-se de chá de couves e vivendo sob tectos de palha que não abrigam completamente da chuva, que diminuem apenas a sua intensidade.


(a propósito de uma conversa com a minha avó sobre um sofisticado frigorífico vazio com apenas uma couve e os relatos dos seus tempos de juventude, não assim há tanto tempo atrás)



As Músicas
Não sei se é arriscado demais dizer que o concerto do Andrew Bird a que assisti em Famalicão, sim, foi mesmo em Famalicão. Não, não foi no Porto ou Lisboa ou Coimbra, foi mesmo naquela cidade perdida algures entre o Porto e Braga. Hum... Já me perdi, e seguindo a tradição daquele meu antecessor que escreveu o texto de cima, não vou apagar e vou continuar, que a electricidade está cara. O que eu queria dizer é que aquele concerto foi dos melhores da minha vida (a seguir ao concerto do Armando Teixeira como Bulllet). Esta música é do "novo" álbum do senh dos assobios, Armchair Apocrypha.


I dreamed you were a cosmonaut
of the space between our chairs
And I was a cartographer
of the tangles in your hair

I sang the song that silence sings
It's the one that everybody knows, everybody knows
The song that silence sings
And this is how it goes

These looms that weave apocrypha
they're hanging from a strand
The dark and empty rooms were full
of incandescent hands

The awkward pause
The fatal flaw
Time, it's a crooked bow
Time is a crooked bow

In time you need to learn, to love
The ebb just like the flow
Grab hold of your bootstraps, and pull like hell
until gravity feels sorry for you, and lets you go
As if you lack the proper chemicals to know
the way it felt the last time you let yourself fall this low

Time's a crooked bow
Time's a crooked bow
Time, it's a crooked bow

Fifty-five and three-eighths years later
At the bottom of a gigantic crater
An armchair calls to you
Yeah, and armchair calls to you
It says, someday, we'll get back at them all
With epoxy and a pair of pliers
As ancient sea slugs begin to crawl
through the ragweed and barbed wire

You didn't write
You didn't call
It didn't cross your mind at all
Through the waves
waves of hay and straw
You couldn't feel a thing at all
Fifty-five and three-eighths
Time
Fifty-five and three-eighths
Time
Time




Os The National ficaram "famosos" no meio indie especialmente após o álbum Alligator de 2005, altura em que me deixei seduzir pelo som sombrio da banda e pela voz poderosa, também sombria do Matt Berninger. Este novo álbum, o Boxer é uma notável evolução em relação ao álbum anterior e uma presença assídua nas adoradas listas dos melhores de 2007.


I got two armfuls of magazines for you
I’ll bring em over
So hang your holiday rainbow lights in the garden
Hang your holiday rainbow lights in the garden and I’ll
I’ll bring a nice icy drink to you

Let me come over I can waste your time I’m bored
Invite me to the war every night of the summer
And we’ll play G.I. blood, G.I. blood
We’ll stand by the pool
We’ll throw out our gold medals

Darling can you tie my string
Killers are callin on me
My angel face is fallin
Feathers are fallin on my feet
Darling can you tie my string
Killers are callin on me

Stay near your, stay near your television
Set it up outside
And hang your holiday rainbow lights in the garden
Hang your holiday rainbow lights in the garden and I’ll
I’ll bring a nice icy drink to you

Let me come over I can waist your time I’m bored
Invite me to the war every night of the summer
And we’ll play G.I. blood, G.I. blood
We’ll stand by the pool
We’ll throw out our gold medals

Darling can you tie my string
Killers are callin on me
My angel face is fallin
Feathers are fallin on my feet
My angel face is fallin
Feathers are fallin on my feet
Darling can you tie my string
Killers are callin on me
Darling can you tie my string
Killers are callin on me
 

 
     

02 janeiro, 2008

O Que É Que Há Nessa Bossa?

A varanda não era verdadeiramente digna desse nome, mas lá conseguiu albergar os dois humanos adultos que observavam o nascer do primeiro dia do ano fixados na pequena linha do horizonte desenhada pelo mar, por entre os prédios rústicos de três andares e as dezenas de árvores que enfeitavam as ruas tão características daquela zona da cidade.

Lá dentro outros dois humanos dançavam descalços, colados em si mesmos, matando a saudade que nasceu naquele espaço que os separou.

No chão, o velho gira-discos fazia o que podia para ler em voz alta aquilo que o cansado vinil de 64 lhe dizia à agulha. E depois havia aquele som que nos parava o coração, sempre que o saxofone do Stan Getz entrava pela bossa do João Gilberto era como se o saxofone e a bossa fossem dois velhos amantes que se reencontravam em cada nota musical, em cada passo de dança.

Cá fora o frio começava a fazer-se sentir, agora que as ervas já eram mais cinza que verde. Um ou outro humano embriagado começava a regressar das festas caríssimas que lhes deram a falsa sensação de popularidade por quanto a noite durou. Agora cantarolavam, ou melhor, gritavam uma música outrora bonita e calavam-se mesmo a tempo de voltar a entrar o saxofone.

Um copo de vinho na mão tão pequena em comparação com aquele objecto de design, e umas palavras que saíram tão baixinho que quase não se faziam ouvir, provocando um sorriso forçado em alguém embriagado pelas horas da manhã.

Lá dentro um beijo começava no sofá e terminava no tapete com gargalhadas e ambos de olhos fixados no tecto e uma sensação de bem estar que nascia daquele vinil já riscado por tantas agulhas, cada qual com a sua história.

Fechou-se a janela e fez-se do tapete sofá para o ponto de situação: as cusquices, as situações da noite, a Constança e o Prijinho, a primeira parte do segundo melhor filme de sempre, a festa “cócó” dos “cócós”, o espumante reserva 1973 na praia, a bossa.

Não faltaram muitas mais coisas para a noite ser perfeita, talvez apenas aquele pequeno desejo pedido a um qualquer fruto seco que se fez passar por uva passa.



A Música
Em 1943 Ary Barroso criou um samba que seria transformado em bossa nova em 1963 quando um jovem saxofonista americano chamado Stan Getz contactou um também jovem músico brasileiro associado a esses novos sons que nasciam no Brasil por essa altura. O músico era o João Gilberto e os sons ainda desconhecidos eram a Bossa, a Bossa Nova. Dessa união nasceu o album de jazz mais vendido de sempre em todo o mundo, aqui numa edição tardia da Verve, em formato digital.


Tá fazendo um ano e meio, amor
Que o nosso lar desmoronou
Meu sabiá, meu violão
E uma cruel desilusão
Foi tudo que ficou
Ficou
Prá machucar meu coração

Quem sabe, não foi bem melhor assim
Melhor prá você e melhor prá mim
A vida é uma escola
Que a gente precisa aprender
A ciência de viver prá não sofrer
 

 

 

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