22 setembro, 2007

A Melodia

A melodia despertou-a. Era o seu primeiro dia na sua nova casa e já estava a ser acordada com o barulho dos vizinhos. Não era bem barulho, não a perturbava, mas também não era uma melodia mais bela que ela alguma vez havia ouvido, apesar de lhe trazer lágrimas aos olhos. Era contraditória, nada fazia sentido com aquela estranha melodia vinda do andar de cima.

Levantou-se, calçou as pantufas felpudas que povoavam o chão cru, ainda vazio de tapetes e meteu água a ferver para o café matinal com a esperança de que fosse essa a solução para a dor de cabeça que sentia por causa da melodia.

"Já chega!", gritou um pensamento enquanto colocava duas colheres de café (era a sua medida perfeita e que levou anos a aprefeiçoar, com uma colher apenas fica muito brando e com três fica forte demais) referindo-se à melodia vinda dos céus.

Subiu as velhas escadas de madeira que pareciam gritar de alegria com cada passo seu, enquanto cantarolava a melodia que já se estava a tornar familiar. Bateu duas vezes à porta (se tivesse batido apenas uma vez, correria o risco da pessoa não ouvir e se batesse três vezes seria mal educado da sua parte). Ninguém apareceu. Esperou uns minutos antes de voltar a bater mais duas vezes. Ninguém, nem sequer sinal de sombras por baixo da porta que emanava o mais puro amarelo do sol matinal.

Depois de saborear o café com as duas tostas barradas com uma qualquer compota colorida de um sabor que não importa muito, saiu à rua e levou consigo, na sua cabeça, a bela melodia que a atormentava. O seu destino estava traçado (o da viagem, não o da sua vida), ia ter com aquele rapazinho estranho que parecia ter respostas para todas as perguntas por mais absurdas que fossem.

Cumprimentou-o com um sorriso e um beijo (a ele bastava-lhe o sorriso) e foi logo ao assunto que lhe interessava. Pegou no telemóvel e pôs logo a tocar a melodia que havia gravado quando ainda estava em casa. A qualidade do som era má e o rapazinho que até então tinha resposta para todas e quaisquer perguntas, ficou sem resposta mas tinha um plano.

Juntos percorreram todas as lojas de discos que se conseguiram lembrar, desde aquelas gigantes que devoram os centros comerciais até àquelas mais pequenas escondidas nas ruas mais estreitas. Mas nada, ninguém sabia que melodia era aquela que tanto fascinava como irritava.

Cansados, sentaram-se nas velhas escadas de madeira, depois de terem batido mais duas vezes na porta. Lá foram ficando hipnotizados pela melodia que sabia a chã de poema e que era cantada numa língua que nenhum deles parecia conseguir também descodificar. Umas horas depois (ou uns minutos depois, dependendo do ponto de vista), as escadas começaram a sua própria melodia até aparecer uma mulher que aparentava ser freira com um saco branco na mão.

Ao vê-los, sorriu para eles e perguntou logo no seu tom mais calmo e apaziguador:
"Estão aqui por causa da melodia, não é?"

Os dois abanaram afirmativamente com a cabeça num ar bastante infantil enquanto esperavam a resposta que mais aguardavam. A mulher meteu calmamente a chave na fechadura enquanto continuava a sussurrar palavras, como se estivesse com medo de perturbar a melodia:
"É para entreter o Sebastião, coitado, sente-se muito sozinho e a opera acalma-o sempre".

Apesar da explicação, tudo aquilo só fez sentido quando a porta se abriu para revelar um velho cão deitado em frente a um gramofone de aspecto rústico, rodeado de discos de vinil cheios de pó dos quais se realçava um nome: Enrico Caruso.



A Música
Enrico Caruso é um dos maiores nomes da ópera (hum... não é que eu conheça muitos mais...) e um dos pioneiros da música gravada, naqueles velhos gramofones que rodavam os discos de vinil a 16 rotações por minuto (isso mesmo, adivinharam, daí o nome deste blog: 16rpm).

La donna è mobile é também uma das árias mais populares daquela que deverá ser mais uma vez a ópera mais famosa do mundo (e não estou a falar daquela que tem um programa de televisão na América, programa esse que a nossa Tia Júlia não copiou!), a Rigoletto de Giuseppe Verdi feita em 1851.

Não é que o italiano seja uma língua muito diferente da nossa, mas foi só depois de ver traduzida esta La donna è mobile para português é que percebi o seu significado, por isso (e com a ajuda de uma menina japonesa que afinal também é italiana) aqui vai a tradução possível para português desta magnífica ode à mulher:

A mulher é ágil
Como uma pena ao vento
Ela muda o seu tom de voz - e a suas ideias.
Sempre doce,
Cara bonita,
A chorar ou a rir, - ela está sempre a mentir.
Sempre miserável
É aquele que confia nela,
Aquele que lhe confidencia - o seu coração indefeso!
No entanto nunca nos sentimos
Completamente felizes
Quem é que naqueles peitos - não bebe o amor!







La donna è mobile
Qual piuma al vento,
Muta d'accento — e di pensiero.
Sempre un amabile,
Leggiadro viso,
In pianto o in riso, — è menzognero.
È sempre misero
Chi a lei s'affida,
Chi le confida — mal cauto il cuore!
Pur mai non sentesi
Felice appieno
Chi su quel seno — non liba amore!


( Uma pequena nota de rodapé num pequeno grande post. Esta entrada é especial uma vez que serve também para comemorar o aniversário do blog, foi há mais ou menos um ano que decidi começar a fazer esta mistura de músicas, fotografias e histórias mais ou menos fantasiadas, mas todas inspiradas na minha vida! Nunca pensei que fosse aguentar um ano, por isso, para toda a gente que lê, comenta e, de um do modo ou de outro, para quem me atura, o meu muito obrigado! )
 

 
     

11 setembro, 2007

Desejo

Faz parte da nossa condição de humanos desejar, sejam coisas, pessoas ou sentimentos. Todos desejamos e o nosso grau de desejo parece ser directamente proporcional à distância a que esse desejo está de se realizar.

Se for fácil demais de se realizar, não tem piada. Se for difícil demais, acaba por aborrecer e o desejo acaba por se esmorecer. É por isso que temos que dosear o desejo com todo o cuidado, como quem rega uma flor perdida num vaso solitário: se metermos água a mais ela morre e se deixarmos de meter água, ela morre na mesma.

Se disséssemos tudo o que tínhamos a dizer e se fizéssemos tudo o que tínhamos a fazer, tudo no mesmo dia, na mesma noite, perderia a piada toda. Eu gosto de fazer as coisas devagar, gosto de pensar temos todo o tempo do mundo. Apesar de saber que isso não é verdade, às vezes fazes-me pensar que sim e que toda aquela treta sobre o desejo é isso mesmo, uma treta.



A Música
Uma música retro de um singer-songwriter da Irlanda do Norte que não faz notar o seu sotaque cerrado ao cantar e que teve o seu momento mais alto nos anos 70. Nota-se a época no som, mas não da forma espalhafatosa a que estamos habituados.


Well, it's a marvelous night for a Moondance
With the stars up above in your eyes
A fantabulous night to make romance
'Neath the cover of October skies
And all the leaves on the trees are falling
To the sound of the breezes that blow
And I'm trying to please to the calling
Of your heart-strings that play soft and low
And all the night's magic seems to whisper and hush
And all the soft moonlight seems to shine in your blush

Can I just have one a' more Moondance with you, my love
Can I just make some more romance with a-you, my love

Well, I wanna make love to you tonight
I can't wait 'til the morning has come
And I know that the time is just right
And straight into my arms you will run
And when you come my heart will be waiting
To make sure that you're never alone
There and then all my dreams will come true, dear
There and then I will make you my own
And every time I touch you, you just tremble inside
And I know how much you want me that you can't hide

One more Moondance with you in the moonlight
On a magic night
La, la, la, la in the moonlight
On a magic night
Can't I just have one more dance with you my love


A Fotografia
É do Dean Forbes, um fotógrafo de formação clássica (alguém se lembra do formato médio?) com fotografias também elas clássicas e que de uma forma ou de outra já vimos noutros sítios, mas não deixam de ser belas.
 

 
     

05 setembro, 2007

Algures Onde Eu Nunca Viajei

Às vezes faço coisas das quais me arrependo e outras vezes não me arrependo das coisas que faço ou digo. Não disse tudo o que lhe tinha a dizer, acobardei-me com a sua primeira lágrima. Talvez tenha sido melhor assim... Não sei...



O Poema
Nos últimos tempos tenho andado viciado num poeta americano que foi um dos maiores poetas do século XX, juntamente com outros seres brilhantes como o nosso Fernando Pessoa. Infelizmente não encontrei nenhuma tradução para português deste poema, por isso decidi fazer uma pequena e rápida tradução livre a partir do original em inglês.

Algures onde eu nunca viajei
Algures onde eu nunca viajei, alegremente para além
De qualquer experiência, os teus olhos têm o seu silêncio
No teu gesto mais frágil estão coisas que me incluem
Ou coisas que não posso tocar porque estão próximas demais

O teu olhar mais discreto desarma-me facilmente
Apesar de eu me ter fechado como se fecham os dedos
Abres-me sempre pétala a pétala à medida que a primavera se abre
(tocando com perícia, misteriosamente) a sua primeira rosa

Ou se o teu desejo for fechares-me, eu e
A minha vida vamos-nos fechar de uma forma bonita, repentinamente
Tal como quando o coração desta flor imagina
A neve a cair por todo o lado, cuidadosamente

Nada da nossa percepção do mundo iguala
O poder da tua imensa fragilidade; cuja textura
Me atrai com a cor dos seus campos,
Rendendo a morte e a eternidade com cada respirar

(eu não sei o que há em ti que se fecha
E abre; Há apenas algo em mim que entende
Que a voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas)
Ninguém, nem sequer a chuva tem umas mãos tão pequenas
E. E. Cummings



A Música
Não me apetece falar da música desta vez, acho que ela fala por si...


I'm sorry, two words
I always think after you're gone
When I realize I was acting all wrong
So selfish, two words that could describe
Old actions of mine when patience is in short supply

We don't need to say goodbye
We don't need to fight and cry
Oh we, we could hold each other tight
Tonight

We're so helpless
We're slaves to our own forces
We're afraid of our emotions
No one, knows where the shore is
We're divided by the ocean
And the only thing I know is
The answer it isn't for us
No the answer isn't for us

I'm sorry, two words
I always think after, oh you're gone
When I realize I was acting all wrong

We don't need to say goodbye
We don't need to fight and cry
No we, we could, we could hold each other tight
Tonight...
Tonight...
Tonight...
Tonight...


As Fotografias
São ambas de uma senhora japonesa chamada Marikska (ou pelo menos é esse o apelido dela) que encontrei no Flickr. Podem ver mais fotos dela aqui ou clicando sobre as fotografias, que é a mesma coisa.
 

 
     

02 setembro, 2007

Ervilhas (Muitas e de Muitas Cores)

Ao que parece, estas coisas do Gourmet e do gosto apurado da Nouvelle Cuisine está a atingir extremos preocupantes. Não bastavam as massas coloridas (que eu tanto gosto) e agora chegam as ervilhas coloridas de várias cores, desde o verde tradicional e aborrecido, diga-se, já estava farto de ervilhas verdes, até um vermelho marte que sabe a tudo menos a ervilhas. Continuo a preferir a taça cheia de bolinhas verdes de um verde forte e vivo, apesar de tudo.

As pessoas são também elas como as ervilhas, parecem todas iguais, parecem todas aborrecidas, mas de vez em quando lá aparece uma ervilha ainda congelada que faz frio na boca e que nos alerta para o facto de não serem todas iguais. Quando colocamos a ervilha cuidadosamente no garfo não sabemos se vai saber a ervilha ou a gelo, mas é isso mesmo que torna tudo interessante. Acho que encontrei uma ervilha congelada que não parece querer derreter e que vai sabendo a gelado de ervilha com o passar dos minutos que afinal são horas, a más horas, num passeio por uma cidade amarela.



A Música
Hoje em dia já toda a gente conhece os rapazes de Sheffield (que teimam em não se mudar para Londres) que ganharam fama com estas coisas da Internet, especialmente com os programas de partilha de ficheiros como o EMule ou o Bittorrent e que decidiram lançar o segundo álbum quase de surpresa para que ele não fosse libertado para a Internet antes do lançamento.

Mesquinhices à parte, este é mais um grande álbum da parte deles, ligeiramente mais maduro que o anterior mas mantendo o som típico deles (se calhar típico demais).


In a foreign place
The saving grace was the feeling
That it was her heart that he was stealing
He was ready to impress
And the fierce excitement
The eyes are bright
He couldn't wait to get away
And I bet that Juliet was just the icing on the cake
Make no mistake, no

And even if somehow he could have shown you
The place you wanted
Well I'm sure you could have made it that bit better on your own
And I bet she told a million people that she'd stay in touch
But all the little promises that don't mean much
When there's memories to be made
And I hope you're holding hands by New Year's Eve
They made it far too easy to believe
That true romance can't be achieved these days

And even if somehow they could have shown you the place you wanted
Well I'm sure you could have made it that bit better on your own
You are the only ones who know


(Ao que parece o calendário do Blogger ainda não está adaptado ao novo calendário estipulado por mim, porque ainda estamos a 33 de Agosto, apesar dele insistir que já estamos em Setembro)
 

 

 

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