A Melodia
A melodia despertou-a. Era o seu primeiro dia na sua nova casa e já estava a ser acordada com o barulho dos vizinhos. Não era bem barulho, não a perturbava, mas também não era uma melodia mais bela que ela alguma vez havia ouvido, apesar de lhe trazer lágrimas aos olhos. Era contraditória, nada fazia sentido com aquela estranha melodia vinda do andar de cima.
Levantou-se, calçou as pantufas felpudas que povoavam o chão cru, ainda vazio de tapetes e meteu água a ferver para o café matinal com a esperança de que fosse essa a solução para a dor de cabeça que sentia por causa da melodia.
"Já chega!", gritou um pensamento enquanto colocava duas colheres de café (era a sua medida perfeita e que levou anos a aprefeiçoar, com uma colher apenas fica muito brando e com três fica forte demais) referindo-se à melodia vinda dos céus.
Subiu as velhas escadas de madeira que pareciam gritar de alegria com cada passo seu, enquanto cantarolava a melodia que já se estava a tornar familiar. Bateu duas vezes à porta (se tivesse batido apenas uma vez, correria o risco da pessoa não ouvir e se batesse três vezes seria mal educado da sua parte). Ninguém apareceu. Esperou uns minutos antes de voltar a bater mais duas vezes. Ninguém, nem sequer sinal de sombras por baixo da porta que emanava o mais puro amarelo do sol matinal.
Depois de saborear o café com as duas tostas barradas com uma qualquer compota colorida de um sabor que não importa muito, saiu à rua e levou consigo, na sua cabeça, a bela melodia que a atormentava. O seu destino estava traçado (o da viagem, não o da sua vida), ia ter com aquele rapazinho estranho que parecia ter respostas para todas as perguntas por mais absurdas que fossem.
Cumprimentou-o com um sorriso e um beijo (a ele bastava-lhe o sorriso) e foi logo ao assunto que lhe interessava. Pegou no telemóvel e pôs logo a tocar a melodia que havia gravado quando ainda estava em casa. A qualidade do som era má e o rapazinho que até então tinha resposta para todas e quaisquer perguntas, ficou sem resposta mas tinha um plano.
Juntos percorreram todas as lojas de discos que se conseguiram lembrar, desde aquelas gigantes que devoram os centros comerciais até àquelas mais pequenas escondidas nas ruas mais estreitas. Mas nada, ninguém sabia que melodia era aquela que tanto fascinava como irritava.
Cansados, sentaram-se nas velhas escadas de madeira, depois de terem batido mais duas vezes na porta. Lá foram ficando hipnotizados pela melodia que sabia a chã de poema e que era cantada numa língua que nenhum deles parecia conseguir também descodificar. Umas horas depois (ou uns minutos depois, dependendo do ponto de vista), as escadas começaram a sua própria melodia até aparecer uma mulher que aparentava ser freira com um saco branco na mão.
Ao vê-los, sorriu para eles e perguntou logo no seu tom mais calmo e apaziguador:
"Estão aqui por causa da melodia, não é?"
Os dois abanaram afirmativamente com a cabeça num ar bastante infantil enquanto esperavam a resposta que mais aguardavam. A mulher meteu calmamente a chave na fechadura enquanto continuava a sussurrar palavras, como se estivesse com medo de perturbar a melodia:
"É para entreter o Sebastião, coitado, sente-se muito sozinho e a opera acalma-o sempre".
Apesar da explicação, tudo aquilo só fez sentido quando a porta se abriu para revelar um velho cão deitado em frente a um gramofone de aspecto rústico, rodeado de discos de vinil cheios de pó dos quais se realçava um nome: Enrico Caruso.
A Música
Enrico Caruso é um dos maiores nomes da ópera (hum... não é que eu conheça muitos mais...) e um dos pioneiros da música gravada, naqueles velhos gramofones que rodavam os discos de vinil a 16 rotações por minuto (isso mesmo, adivinharam, daí o nome deste blog: 16rpm).
La donna è mobile é também uma das árias mais populares daquela que deverá ser mais uma vez a ópera mais famosa do mundo (e não estou a falar daquela que tem um programa de televisão na América, programa esse que a nossa Tia Júlia não copiou!), a Rigoletto de Giuseppe Verdi feita em 1851.
Não é que o italiano seja uma língua muito diferente da nossa, mas foi só depois de ver traduzida esta La donna è mobile para português é que percebi o seu significado, por isso (e com a ajuda de uma menina japonesa que afinal também é italiana) aqui vai a tradução possível para português desta magnífica ode à mulher:
A mulher é ágil
Como uma pena ao vento
Ela muda o seu tom de voz - e a suas ideias.
Sempre doce,
Cara bonita,
A chorar ou a rir, - ela está sempre a mentir.
Sempre miserável
É aquele que confia nela,
Aquele que lhe confidencia - o seu coração indefeso!
No entanto nunca nos sentimos
Completamente felizes
Quem é que naqueles peitos - não bebe o amor!
La donna è mobile
Qual piuma al vento,
Muta d'accento — e di pensiero.
Sempre un amabile,
Leggiadro viso,
In pianto o in riso, — è menzognero.
È sempre misero
Chi a lei s'affida,
Chi le confida — mal cauto il cuore!
Pur mai non sentesi
Felice appieno
Chi su quel seno — non liba amore!
( Uma pequena nota de rodapé num pequeno grande post. Esta entrada é especial uma vez que serve também para comemorar o aniversário do blog, foi há mais ou menos um ano que decidi começar a fazer esta mistura de músicas, fotografias e histórias mais ou menos fantasiadas, mas todas inspiradas na minha vida! Nunca pensei que fosse aguentar um ano, por isso, para toda a gente que lê, comenta e, de um do modo ou de outro, para quem me atura, o meu muito obrigado! )
Levantou-se, calçou as pantufas felpudas que povoavam o chão cru, ainda vazio de tapetes e meteu água a ferver para o café matinal com a esperança de que fosse essa a solução para a dor de cabeça que sentia por causa da melodia.
"Já chega!", gritou um pensamento enquanto colocava duas colheres de café (era a sua medida perfeita e que levou anos a aprefeiçoar, com uma colher apenas fica muito brando e com três fica forte demais) referindo-se à melodia vinda dos céus.
Subiu as velhas escadas de madeira que pareciam gritar de alegria com cada passo seu, enquanto cantarolava a melodia que já se estava a tornar familiar. Bateu duas vezes à porta (se tivesse batido apenas uma vez, correria o risco da pessoa não ouvir e se batesse três vezes seria mal educado da sua parte). Ninguém apareceu. Esperou uns minutos antes de voltar a bater mais duas vezes. Ninguém, nem sequer sinal de sombras por baixo da porta que emanava o mais puro amarelo do sol matinal.
Depois de saborear o café com as duas tostas barradas com uma qualquer compota colorida de um sabor que não importa muito, saiu à rua e levou consigo, na sua cabeça, a bela melodia que a atormentava. O seu destino estava traçado (o da viagem, não o da sua vida), ia ter com aquele rapazinho estranho que parecia ter respostas para todas as perguntas por mais absurdas que fossem.
Cumprimentou-o com um sorriso e um beijo (a ele bastava-lhe o sorriso) e foi logo ao assunto que lhe interessava. Pegou no telemóvel e pôs logo a tocar a melodia que havia gravado quando ainda estava em casa. A qualidade do som era má e o rapazinho que até então tinha resposta para todas e quaisquer perguntas, ficou sem resposta mas tinha um plano.
Juntos percorreram todas as lojas de discos que se conseguiram lembrar, desde aquelas gigantes que devoram os centros comerciais até àquelas mais pequenas escondidas nas ruas mais estreitas. Mas nada, ninguém sabia que melodia era aquela que tanto fascinava como irritava.
Cansados, sentaram-se nas velhas escadas de madeira, depois de terem batido mais duas vezes na porta. Lá foram ficando hipnotizados pela melodia que sabia a chã de poema e que era cantada numa língua que nenhum deles parecia conseguir também descodificar. Umas horas depois (ou uns minutos depois, dependendo do ponto de vista), as escadas começaram a sua própria melodia até aparecer uma mulher que aparentava ser freira com um saco branco na mão.
Ao vê-los, sorriu para eles e perguntou logo no seu tom mais calmo e apaziguador:
"Estão aqui por causa da melodia, não é?"
Os dois abanaram afirmativamente com a cabeça num ar bastante infantil enquanto esperavam a resposta que mais aguardavam. A mulher meteu calmamente a chave na fechadura enquanto continuava a sussurrar palavras, como se estivesse com medo de perturbar a melodia:
"É para entreter o Sebastião, coitado, sente-se muito sozinho e a opera acalma-o sempre".
Apesar da explicação, tudo aquilo só fez sentido quando a porta se abriu para revelar um velho cão deitado em frente a um gramofone de aspecto rústico, rodeado de discos de vinil cheios de pó dos quais se realçava um nome: Enrico Caruso.
A Música
Enrico Caruso é um dos maiores nomes da ópera (hum... não é que eu conheça muitos mais...) e um dos pioneiros da música gravada, naqueles velhos gramofones que rodavam os discos de vinil a 16 rotações por minuto (isso mesmo, adivinharam, daí o nome deste blog: 16rpm).
La donna è mobile é também uma das árias mais populares daquela que deverá ser mais uma vez a ópera mais famosa do mundo (e não estou a falar daquela que tem um programa de televisão na América, programa esse que a nossa Tia Júlia não copiou!), a Rigoletto de Giuseppe Verdi feita em 1851.
Não é que o italiano seja uma língua muito diferente da nossa, mas foi só depois de ver traduzida esta La donna è mobile para português é que percebi o seu significado, por isso (e com a ajuda de uma menina japonesa que afinal também é italiana) aqui vai a tradução possível para português desta magnífica ode à mulher:
A mulher é ágil
Como uma pena ao vento
Ela muda o seu tom de voz - e a suas ideias.
Sempre doce,
Cara bonita,
A chorar ou a rir, - ela está sempre a mentir.
Sempre miserável
É aquele que confia nela,
Aquele que lhe confidencia - o seu coração indefeso!
No entanto nunca nos sentimos
Completamente felizes
Quem é que naqueles peitos - não bebe o amor!
La donna è mobile
Qual piuma al vento,
Muta d'accento — e di pensiero.
Sempre un amabile,
Leggiadro viso,
In pianto o in riso, — è menzognero.
È sempre misero
Chi a lei s'affida,
Chi le confida — mal cauto il cuore!
Pur mai non sentesi
Felice appieno
Chi su quel seno — non liba amore!
( Uma pequena nota de rodapé num pequeno grande post. Esta entrada é especial uma vez que serve também para comemorar o aniversário do blog, foi há mais ou menos um ano que decidi começar a fazer esta mistura de músicas, fotografias e histórias mais ou menos fantasiadas, mas todas inspiradas na minha vida! Nunca pensei que fosse aguentar um ano, por isso, para toda a gente que lê, comenta e, de um do modo ou de outro, para quem me atura, o meu muito obrigado! )
3 COMENTÁRIOS:
eu também gosto de colocar duas colheres de açucar.e também eu só me atrevo a tocar duas vezes à porta.assim como também gosto de levar uma melodia maravilhosamente intrigante no ouvido,e sentir o prazer da descoberta do nome de quem a criou,de quem a trouxe até aos meus ouvidos :)
mais um pequeno-grandioso post,como já nos habituaste (e nunca nos cansaste) :)
se há dias maus em que chegar a casa e ler o que aqui escreves me conforta os sentidos,e se em dias como esses nunca te cheguei a agradecer (também porque entretanto desapareceste ;)...),agradeço te agora joão-limão ;) por todos os momentos que não consegui,e tu,ainda que através de um texto,uma música ou um simples fotografia,me ajudaste - de novo - a sonhar*
A história é linda linda linda!
É mesmo engraçado ouvi tantas vezes essa música em toda a parte mas nem fazia ideia do significado.
Beijo*****!
hm... qualquer coisa que possa dizer sobre o teu texto vai parecer banal ;), por isso lá vai um comentário banal de alguem a quem não ocorre nada,mas quer dizer alguma coisa: está tão bonito :)!
tenho tanta coisa para falar contigo mas ando a dormir em pé,não que já esteja a trabalhar até caír pro lado, mas porque as luzes fluorescentes das salas de aula deixam-me a cair de sono.A culpa é toda das luzes!:d
Beijinho & asteriscos
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