Esta coisa de ser português e de se viver neste cantinho de terra junto ao mar tem que se lhe diga. Primeiro porque, por sermos poucos, partilhamos demasiadas características uns com os outros, depois porque são essas características que nos definem e que nos influenciam até nas coisas mais pequenas e insignificantes do dia-a-dia.
Porque me orgulho de ser português, seis músicas do melhor que se tem feito nos últimos anos por terras de D. Afonso Henriques na minha muy humilde opinião, juntamente com seis fotografias de uma das minhas fotógrafas favoritas,
Cristina Ferreira.
O Ser Português, Parte I: A Necessidade de PartirNão sei de onde nasce esta nossa necessidade de fugirmos de tudo, de dar uma volta e visitar o mundo entretanto. Talvez sejam ainda restos da ousadia que foram descobrimentos.
A música é uma favorita pessoal, feita a partir de um poema de um dos maiores poetas de sempre (em todo o mundo, não só em Portugal), Fernando Pessoa aqui como Álvaro de Campos, interpretado pela
Margarida Pinto.
Na véspera de não partir nunca
Ao menos não há que arrumar malas
Nem que fazer planos em papel,
Com acompanhamento involuntário de esquecimentos,
Para o partir ainda livre do dia seguinte.
Não há que fazer nada
Na véspera de não partir nunca.
Grande sossego de já não haver sequer de que ter sossego!
Grande tranqüilidade a que nem sabe encolher ombros
Por isto tudo, ter pensado o tudo
É o ter chegado deliberadamente a nada.
Grande alegria de não ter precisão de ser alegre,
Como uma oportunidade virada do avesso.
Há quantas vezes vivo
A vida vegetativa do pensamento!
Todos os dias sine linea
Sossego, sim, sossego...
Grande tranqüilidade...
Que repouso, depois de tantas viagens, físicas e psíquicas!
Que prazer olhar para as malas fítando como para nada!
Dormita, alma, dormita!
Aproveita, dormita!
Dormita!
É pouco o tempo que tens! Dormita!
É a véspera de não partir nunca!
O Ser Português, Parte II: A SaudadeComo é certo e sabido não existe nenhuma outra palavra em qualquer outra língua de qualquer parte do mundo equivalente à nossa saudade. Será porque as outras pessoas nunca a sentiram ou porque nós somos viciados nela?
Davide Balula é um artista plástico português radicado em Paris que em 2006 lançou o fabuloso
Pellicule cheio de músicas experimentais, algumas das quais cantadas em português, como é o caso desta
Íris em Arco.
O Ser Português, Parte III: A Ausência Do TempoPorque fazemos tudo à última da hora e porque o tempo (excluindo o passado) não nos mata a cabeça.
Os Coldfinger são uma dupla portuguesa de trip-hop composta pela inevitável Margarida Pinto e pelo Miguel Cardona. Podem encontrar esta Para Um Poema no álbum Lefthand de 2000.
Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã
Levarei a manhã a
pensar
Em depois de amanhã
E assim será possível,
Mas hoje não, hoje nada, hoje não posso...
A
persistência confusa
Da minha subjectividade objectiva,
Sono da minha vida real,
Intercalado, o cansaço
antecipado e infinito...
Tenho já o plano traçado,
mas não,
Hoje não traço planos
Amanhã é o dia dos
planos,
Amanhã sentar-me-ei p'ra conquistar o
mundo,
Depois de amanhã
Amanhã te direi as
palavras, ou depois de amanhã
Sim, depois de amanhã
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã
Sim, depois de amanhã
Depois de amanhã, sim, só
depois de amanhã
Levarei a manhã a pensar
Em depois
de amanhã
E assim será possível,
Mas hoje não, hoje
nada, hoje não posso...
Mas hoje não, hoje nada, hoje não
posso...
Mas hoje não, hoje nada, hoje não posso...
Mas hoje não, hoje nada, hoje não posso...
Não
posso...
O Ser Português, Parte IV: A Metaforização do PensamentoDizer o que se pensa e o que se quer não tem tanta piada como escondê-lo em metáforas abstractas e namorar as palavras num acto de sedução não intencional.
Balla é um dos projectos de
Armando Teixeira (o outro é
Bulllet), o músico multifacetado que nos envolve em várias atmosferas distintas com toques de Electrónica e até, nesta música, dois ou três toques de Jazz.
Procuras a mudança
Passas à terceira
Travas suavemente
Aceleras de repente
Os cabelos do motor
Estão sempre ao teu dispor
É um silêncio que seja potência
Sem te desviares da trajectória
Quero ser, quero ser
O teu Volkswagen
Desperta os Instintos
Reage aos movimentos
E responde com sucesso
Às ordens do teu braço
Escolhes a velocidade
E o grau de suavidade
Sem excesso de rotação
Com brandura na aceleração
Quero ser, quero ser
O teu Volkswagen
Direcção assistida
Conforto na auto-estrada
Segurança garantida
Quilometragem ilimitada
Quero ser, quero ser
O teu Volkswagen
O Ser Português, Parte V: A Forma Subtil de AmarOs americanos abusam do I Love You, os franceses romanceiam o Je T'aime em demasia, os italianos cantam o Ti Amo a toda a hora até que a frase deixe de ter significado por se ter tornado tão vulgar. Nós usamos o Amo-te em ocasiões especiais, aliás, quando um português diz amo-te é porque realmente é isso que sente, mas não o dizemos com toda a força do nosso ser para que todo o mundo saiba, dizemos apenas ao ouvido da pessoa amada.
Cristina Branco prova que há Fado para além do tradicional e da Mariza com a sua voz doce, por vezes propositadamente frágil e os arranjos também eles com algumas pitadas de Jazz. Aqui canta um poema de Chico Buarque que já tinha sido cantado por Maria Bethânia mas sem a subtileza e a beleza arrepiante da voz da Cristina Branco.
O meu amor tem um jeito manso que é só seu
E que me deixa louca quando me beija a boca
A minha pele toda fica arrepiada
E me beija com calma e fundo
Até minh'alma se sentir beijada
O meu amor tem um jeito manso que é só seu
Que rouba os meus sentidos, viola os meus ouvidos
Com tantos segredos lindos e indecentes
Depois brinca comigo, ri do meu umbigo
E me crava os dentes
Eu sou sua menina, viu? E ele é o meu rapaz
Meu corpo é testemunha do bem que ele me faz
O meu amor tem um jeito manso que é só seu
De me deixar maluca quando me roça a nuca
E quase me machuca com a barba mal feita
E de pousar as coxas entre as minhas coxas
Quando ele se deita
O meu amor tem um jeito manso que é só seu
De me fazer rodeios, de me beijar os seios
Me beijar o ventre e me deixar em brasa
Desfruta do meu corpo como se o meu corpo
Fosse a sua casa
Eu sou sua menina, viu? E ele é o meu rapaz
Meu corpo é testemunha do bem que ele me faz
O Ser Português, Parte VI: A alma salgada de marSabem aquele sentimento quando saímos da praia já depois do pôr-do-sol e nos parece que temos sal agarrado ao corpo, depois de seca a água do mar? Acho que a nossa alma tem também ela sal agarrado...
O álbum
Sede do
Jorge Cruz foi para mim uma das grandes surpresas de 2004. Confesso que não esperava nada tão bom e com tanta qualidade deste ilustre desconhecido. É fundamental descobrir para quem não conhece!
Olha se eu ficar
Em ti para sempre
Suave, suave
Suave, suave
Menina que a noite
Torna ausente
Foge pró mar
Até passar
Sou a tua vez
E olha se eu for só
Um passatempo
Suave, suave
Suave, suave
Menina que a lua
Torna presente
Corre pró mar
Vem-me buscar
És a minha vez
E olha se houve um mar
No nosso templo
Suave, suave
Suave, suave