24 fevereiro, 2007

O melhor contador de histórias do mundo, o meu Avô

- Quando eu era mais novo - disse-me o meu avô enquanto cortava duas fatias de chouriça com a sua velha e fiel navalha (a qual ainda guardo cuidadosamente numa pequena caixa) - havia um penedo ali em cima - e nisto apontou para os montes que nasciam lá para trás das casas - que se chamava o penedo da sereia - meteu uma rodela à boca e deu-me a outra preparando já a mão livre para agarrar o copo por esta altura cheio (e quando digo cheio quero mesmo dizer a transbordar, mas sem nunca o fazer) de um líquido vermelho que mais tarde vim a saber ser vinho tinto – Os mais velhos, os meus pais… Os teus bisavós, diziam que aquele penedo estava enfeitiçado, que quem se aproximasse de lá e ouvisse a voz da sereia iria ficar amaldiçoado para o resto da vida. – Deu mais um golo no copo enquanto observava os meus olhos atentos, porque os nossos olhos, como ele dizia, são o espelho dos ouvidos, quanto mais abertos, mais ouvimos – Mas como deves adivinhar, eu e os outros moços da minha idade… da idade que tu vais ter um dia… Bom, nós tínhamos que lá ir porque queríamos ver essa misteriosa sereia. - Olhou em volta à procura de algo – Sabes como é que isto ficava bom? – Perguntou sabendo que eu não sabia a resposta e, por isso, respondendo logo a seguir – Era com um bocadinho de água ardente. Mas não digas nada à tua avó, ouviste? – Fingi um abanar de cabeça sincero quando o que realmente queria era ouvir o resto da história, mas ele, como qualquer bom contador de histórias, fazia uma história que se contava em dois minutos durar duas horas para o grande regozijo da criança gorda e solitária que se apresentava à sua frente. Colocou a água ardente num prato e acendeu-a com um dos fósforos em miniatura que guardava sempre e inevitavelmente no bolso direito das calças, fossem elas quais fossem. Depois colocou lá a chouriça e começou a assá-la com aquele sorriso malandro que de vez em quando também deixo escapar.

- Mas então e a sereia? Conta! – Perguntei eu debruçado sobre a mesa e deliciado em partes iguais pela história em suspenso e pelo fogo que nascia do prato. Estava tão absorto que até o tratei por “tu”, o que ele considerava ser uma gravíssima falta de respeito, mas naquele dia acho que nem reparou. – Ó Bú, conta lá!

- Eu e o Zé Botas, o filho da Ser’Olívia… Aquela que mora ali em baixo – Se o ali em baixo fosse um local verdadeiro, então toda a gente morava lá – Íamos para o monte, numa tarde de folga e encontramos o… - Encorrilhou a testa e franziu um dos olhos azuis inclinando muito levemente a cabeça ( como eu faço ) – ah! Era o… - e disse um nome qualquer que a memória agora não me deixa lembrar, mas vamos-lhe chamar de Zé do Monte só para esta história, porque um bom contador de histórias nunca deixa o público suspenso numa imprecisão – Era o Zé do Monte! – Afirmou com toda a certeza do mundo. – Então lá íamos nós monte acima quando o Zé Botas disse que tinha ouvido a voz de uma mulher a chamar por nós. Eu não ouvi nada mas o Zé do Monte também insistia que estava uma mulher a chamar por nós. Depois de algumas voltas pelo monte à procura da mulher, ele finalmente disse que o som vinha de uma gruta pequena que se escondia debaixo de um penedo sinistro. O Zé Botas, que era um destemido – Ele levou novamente o copo à boca enquanto as chamas se extinguiam no prato –quis logo entrar e o Zé do Monte foi atrás dele, mas eu pensei cá para mim: “Não! Deixa-te estar aqui que estás bem!” – E enquanto dizia isto, o meu avô apontava com o dedo indicador para um dos olhos – Quando eles voltaram – continuou – o Zé do Monte vinha a tremer, parecia que tinha visto um fantasma. O Zé Botas não dizia nada, só olhava em frente, nunca o tinha visto assim. Eu perguntei-lhes o que é que eles tinham visto lá dentro mas eles não responderam. Nunca vim a saber o que é que eles viram lá dentro, nunca me chegaram a dizer. Não sei se foi uma sereia ou se foi uma bruxa, mas a verdade é que eles nunca mais foram os mesmos depois daquele dia. O Zé do Monte uns anos mais tarde enforcou-se e o Zé Botas emigrou, dizem que foi para França, mas eu tenho cá na minha ideia – disse ele no seu ar de sábio a abanar o dedo indicador no ar – que ele não foi nada para França. Eu acho que é ele que vive naquela casa abandonada à entrada do monte.

- Nunca o foi procurar? – Perguntei, intrigado.

- Chamei pelo nome dele, mas ele não reagiu.

- E tu, bú, não te aconteceu nada de estranho?

- No dia a seguir conheci a tua avó. – Nisto ouvimos o portão a bater lá em baixo – É ela, rápido, guarda isso – Disse-me, passando-me a garrafa de água ardente para a mão, com preocupação nos olhos e um sorriso regalado de quem acabou de passar um bom momento. Ele amava-a mas nunca soube se ela o amava.


O meu avô não falava. Teve um problema na garganta por causa dos cigarros e, desde que o conheci, apenas conseguia sussurrar muito baixinho, mas como era delicioso passar as tardes a ouvir aquele sussurrar com os barulhos típicos da aldeia no fundo e aquele sorriso que nunca se desvanecia…

( Se estiveram atentos à história, então não a perceberam e, se assim foi, então peço desculpa pelo tempo que vos fiz perder. A verdadeira beleza de todas as histórias que o meu avô me contava não estava nas histórias em si, mas na forma como ele as contava. É por isso que ele é, e será sempre para mim, o melhor contador de histórias do mundo )




A Música
Os The Memory Band são uma super banda (com 10 elementos) de folk vinda da Inglaterra. Não consigo explicar porquê, mas adoro estes sons e tenho a certeza que, se o meu avô estivesse aqui, iria querer dedicar esta música à minha avó (Raios! Porque é que tive que sair a ele e ser um romântico à moda antiga? Podia gostar de coisas supérfluas ou ser um desses Emos que gostam de… sei lá de que raio é que eles gostam, não devem gostar de nada).


I want you to know you make me happy
I want you to know you make me glad
You are the Best Thing I’ve ever had

7 COMENTÁRIOS:

Anonymous Anónimo disse...

É incrível, pelo que contas és igualzinho ao teu avô! Os tiques, a forma de contar histórias, a mania de amar quem não te merece (ups, não estou a querer dizer que a tua avó não merecia o teu avô, estou mais a referir-me às tuas experiências)

24/2/07 18:47  
Blogger João Esquimó disse...

Hum... Tirando a parte física (o meu avô era loiro e tinha olhos azuis) acho que sou muito parecido com ele, sim, incluindo a mania de amar, não o tipo de pessoas que não nos merecem, mas antes o tipo de pessoas que não ligam nada à nossa forma tonta de amar...

24/2/07 19:06  
Anonymous Anónimo disse...

E isso não é a mesma coisa, joãozinho? Amar alguém que não compreende a nossa forma de amar é amar alguém que não nos merece.

24/2/07 19:19  
Blogger cris disse...

herdaste do teu avô a maneira do contar historias e todo o romantismo envolvente.
cativas da primeira à ultima linha de cada pedaço teu,de cada historia tua.
considera te entao um dos melhores contadores de historia que eu conheço e com umas das maneiras mais amorosas de ver o nosso mundo .)
*

ah.e tenho a certeza que até a tua avó adoraria esta musica,vinda do teu avô ,)

25/2/07 21:39  
Blogger Stone disse...

JOao, tu música de hoy dice cosas tan simples y tan bellas como las historias de "teu avó". Sin duda.
Es lo que a todos nos gustaría escuchar alguna vez: you make me happy, you make me glad.
Abrazos y perdoname que no escriba en portugués todavía.
(no sabes cuánto me agrada volver a tu blog y encontrar cositas nuevas cada día..!)

25/2/07 22:58  
Blogger João Esquimó disse...

Olá Stone, obrigado pelo comentário, é sempre bom saber que alguém gosta deste pequeno espaço, especialmente alguém que, à partida, não deveria perceber o que está aqui escrito, como alguém de Espanha!

( Já agora, podes dar-me o nome de algumas bandas indie espanholas? )

27/2/07 01:35  
Anonymous Anónimo disse...

Ola João Sem Medo! Confesso que esta historia me colocou à flor da pele, talvez não tanto como a do elefante e do limão, ou ate aquela do anão dos repolhos, mas fez-me sorrir e voltar a querer as coisas pequeninas! Quanto à tua avó, acho somente que ela tinha outra forma de amar, e se o teu avô a amava, ele sabia disso! Um beijo gordo*

27/2/07 12:50  

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